MONTES CLAROS – MG – Zeca Sapateiro. Assim ele se apresentava informalmente, quase sem sorrir. Mas o olhar fixo, inteligente, denotava que nos estudava eticamente, sem querer ser intruso. Olhares que talvez camuflassem críticas veladas…
Jamais Zeca alterava o tom de voz, ou impunha ritmo acelerado nos movimentos físicos, similares aos de um bicho-preguiça. Tinha por mim que esse vagar era uma forma de curtir a vida…
Zeca Sapateiro tornou-se referência local no reparo exemplar de calçados diversos. Sua humilde sapataria ficava na Rua Cel. Altino de Freitas, quase na esquina do Beco das Madames; prostíbulo bem frequentado pelos marmanjos da city…
As beldades desse beco também o procuravam para reparar sandálias e calçados. Zeca as atendia identicamente atencioso, sem discriminação.
“Pode vir pegar amanhã”, dizia ao agendar a entrega do serviço.
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Eu gostava muito de observá-lo “surrando” solas de sapato, para posterior colagem. O bate-bate na pequena bigorna se intensificava mais quando tinha botas rústicas em mãos.
“Essas aqui já levam pregos de reforço”, explicou certa vez.
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O entra e sai de gente na sua humilde sapataria de chão batido era frequente. Ele também morava lá, aos fundos de um corredor escuro. Sempre tive curiosidade em saber o segredo daquelas dependências…
A sapataria de Zeca ficava num plano mais baixo do passeio, em relação à rua. Parecia um imóvel meio “afundado”. Ou seja: era preciso descer dois degraus. Será que inundava tudo quando chovia forte?
Pelo visto, a casa velha que sediava essa sapataria não dispunha sequer de energia elétrica, ou sistema hidráulico. Zeca mesclava sua condição de pobreza com as de cidadão refinado.
Nas minhas visitas, observei-o indo e vindo pelo misterioso corredor em intervalos próximos, após se levantar do banquinho de sopetão. Em algumas ocasiões, ele demorou a voltar…
“Ou foi comer algo ou está no banheiro…” – pensava então.
Ele nunca me indagou por qual motivo ia tanto à sua sapataria. Aliás, por morar ali pertinho, isso passou a ser uma rotina agradável.
Ao chegar e cumprimentá-lo, Zeca me olhava sério, pupilas dilatadas pelos óculos de grau fortíssimo.
“Bom dia!”. Ou “Boa tarde!” – respondia ao cumprimentos. Ocorria de eu ir lá cedo e também à tarde…
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Um balcão de madeira surrada dividia o espaço entre o sapateiro e os chegantes.
Mesmo no desempenho de conserta sapatos e similares [sandálias, botas], Zeca permanecia atento à movimentação do lugar. Se alguém surgia no balcão, ele se levantava receptivo, pronto para ouvir as instruções sobre o calçado que baixou no seu ‘terreiro hospitalar’.
Pelo costumeiro vestuário alvo, desconfiei que ele pudesse ser pai de santo…
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Nessa época [pois nem sei se ainda vive], Zeca aparentava incrível semelhança com o cantor Juca Chaves, inclusive na estatura e voz aveludada. E ao dedilhar um violão com maestria, cantando sem destoar da afinação, isso ficou mais latente.
“Agora virou o próprio Juca!” – concluí.
Zeca não se descuidava da aparência. Impressionante a pele lisa e bem cuidada do seu rosto.
Sem rodeios, depois que indaguei como conseguia aquilo, ele informou que fazia uso de mel cremes.
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Montes Claros se expandiu e a sapataria de Zeca praticamente se desfez de forma mágica. Creio que se mudou dali ou foi fazer outra coisa. Fiquei sabendo que se formou em Direito, que honra!
No mais, ficou uma lição clara desse período de infância: as pessoas são o que são. Guardarei para sempre aquela imagem do homem educado e detentor de energia positiva que Zeca cunhou fortemente na minha mente.
Por João Carlos de Queiroz, jornalista Mtb 381.18/Drt-MT