Havia uma bruxa no meu quintal…

POR MAIS QUE A IMAGINAÇÃO PREGUE PEÇAS, HÁ COISAS QUE FICAM NO AR...

Montes Claros – Minas Gerais, anos 80 – O sobrado que adquirimos do antigo Banco Nacional de Habitação [Morada do Parque] era geminado com outro imóvel, inicialmente desabitado.

Da sacada, sempre curioso, eu perscrutava o quintal vazio do “vizinho” inexistente, repleto de folhas que o vento acumulava no dia a dia. Às vezes também batia forte na parede, à espera de que alguém respondesse. Mas… lá não morava ninguém, era um imóvel ainda virgem…

Portanto, espiar aquela casa vazia se tornou minha rotina diária, até que um dia detectei uma sombra postada na janela, aparentemente observando a rua.

Ela [a tal sombra] deve ter percebido que fora descoberta, pois saiu rápido dali. Então morava alguém naquele sobrado!, pensei.

Meus pais discordaram disso; salientaram que, vez ou outra, corretores até apareciam por lá, trazendo eventuais interessados em alugá-lo.

Cada vez mais intrigado, reforcei as batidas com os nós dos dedos nas paredes, na esperança de obter resposta. Certa tarde, praticamente ao anoitecer, algo raspou forte a parede do outro lado. Parecia um gancho ou unhas graúdas, pela intensidade dos ruídos…

Fui à sacada e aguardei que mais novidades acontecessem, em vão. Tudo quieto, silencioso e deserto no casarão fantasma. Deve ter sido impressão, deduzi, dando minhas investigações por encerradas…

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Dias após, ao olhar para o arvoredo tremulante do Parque Municipal, situado do outro lado da avenida que circunda o bairro, percebi que alguma coisa voava rápido de um lado para o outro, aparentemente no cume das árvores de copa mais alta.

“Pássaro àquela hora do dia, já quase noite, não deve ser…” – concluí num primeiro raciocínio.

Logo essa misteriosa sombra tomou um formato mais preciso e veio voando veloz rumo ao nosso sobrado. Confesso que gelei dos pés à cabeça, ciente de que não era coisa desse mundo…

A rapidez ágil com que aquela coisa adentrou no casarão lateral ao nosso foi tanta que mal consegui identificar se era gente ou animal. O certo é que, agora, ela estava bem do outro outro lado das paredes. Desconfortável demais…

Por precaução, não quis averiguar se também “a coisa” poderia estar andando pelos fundos do quintal. Nessa noite, escutei mais barulhos, passos e algo mexendo incessantemente lá dentro. Passos…

Contei tais observações para os parentes, que riram muito. Deduziram que estivesse inventando assombração para assustá-los. E afirmaram que jamais tinham escutado ou visto algo no sobrado vazio.

Ou seja: meus relatos eram fictícios, sem fundamento. Insisti para que prestassem mais atenção…

Nos dias seguintes, como se soubesse da minha inquietude, essa barulheira sumiu. Também não vi mais sombras voando do parque para a casa, e vice-versa, ainda que esse voo tivesse acontecido apenas uma única vez.

Ainda bati nas paredes várias ocasiões, e não obtive nenhum sinal. Realmente, deveria estar imaginando coisas que só existiam mesmo na minha cabeça…

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Uma manhã, perto do meio-dia, escutei o portão sendo aberto. Apesar de não ter cadeado, poderia ser alguém da imobiliária, trazendo alguém interessado em alugar aquele sobrado.

O barulho passou a acontecer nos fundos do quintal, e estiquei o pescoço para ver quem entrara lá. Vi uma mulher negra agachada…

Ao lado da mulher, uma imensa vassoura estava encostada, dessas vassouras usadas por bruxas.

“Meu Pai! Sou vizinho de uma bruxa!” – outra conclusão óbvia.

A mulher fazia não sei o quê. Permanecia imóvel agachada. Usava um saião escuro, que cobria praticamente todo o seu corpo. Um imenso chapéu mexicano também escondia as feições…

“As bruxas estão se modernizando”, pensei.

Pensei isso porque a imagem dos horrendos chapéus de bruxa [com pontas caídas] fez contraste imediato à visão da chapeluda estarrachada no quintal.

Subitamente, a “bruxa” – posto que já a qualificara assim – volteou a cabeça e olhou para cima em minha direção.

“Pronto! Ela me descobriu! E agora?”

Ela se levantou rápido, ajeitando o saião. E pegou a vassoura de piaçava.

Pude ver que se tratava de uma mulher obesa, de olhos imensos. O olhar que me direcionou não emitiu nenhum espanto, mas algo recriminador. Não entendi…

Sem-graça, ela saiu do meu campo visual rapidamente. O portão bateu seco. Foi quando constatei o motivo de estar agachada ali: estava defecando; deixou rodilha de fezes, que o saião escondera.

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Minha mãe contou depois que uma das encarregadas de varrer as ruas do bairro disse ter sido acometida de desconforto intestinal, e assim teve que recorrer ao “sanitário” improvisado do quintal do sobrado.

“Ela me contou porque disse que você a viu “fazendo o serviço”. Ficou com muita vergonha, João!”

AINDA não sei por onde anda a bruxa que talvez tenha sido a minha vizinha naquele sobrado conjugado…

Por João Carlos de Queiroz, jornalista

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