A ‘carrocinha do leite’ não anda mais por Montes Claros; escravos quadrúpedes agradecem…

Leite processado na cooperativa local era vendido em pontos diversos da cidade por meio de charrete. A presente homenagem é dedicada aos equinos que transportavam o produto: alguns levavam impiedosas chibatadas todos os dias...

NOS LONGÍNQUOS ANOS de atraso, Montes Claros-MG vivenciou cena pitoresca: a passagem da carrocinha do leite, charrete da cooperativa local. Presume-se que várias delas percorriam diariamente a cidade, a partir das primeiras horas da manhã.

A charrete era equipada com cilindro ovalado, cor metálica, que acondicionava centenas de litros do produto. Inclusive, mantinha-o gelado por horas seguidas, durante o extenso percurso por bairros urbanos e periféricos.

Ao estacionar a charrete, o condutor buzinava seguidamente. Devia ter calos nas mãos, de tanto apertar aquela corneta…

– PAM! PAM! PAM!

Nem precisava fazer isso, pois os moradores tinham ciência do horário da da carrocinha, mantendo-se de prontidão.

Nas primeiras detonações sonoras, manifestava-se mágica aparição de pessoas; eclosão similar a formigas graúdas em silenciosa marcha…

Afoitos por leite, todos se agrupavam atrás da carrocinha, seja sob sol ou chuva. Se chovia, legião de guarda-chuvas/sombrinhas digladiavam espaços entre si…

Outro detalhe chamativo na chegada da carrocinha: sons metálicos originários do entrechoque de panelas bamboleantes, cativas dos passos dos seus proprietários.  Se fechássemos os olhos, tornava-se fácil visualizar bateristas imaginários testando a afinação dos instrumentos.

Fila formada, tinha início o fornecimento de leite. Medição feita numa concha metálica; ágil o processo de enche/esvazia daquela concha.

– Quer quantos litros? – perguntava repetitiva do condutor.

EM menos de 20 minutos, a pequena fila da carrocinha se desintegrava; as pessoas saíam bem devagar, para não derramar leite pelo caminho.

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O CHARRETEIRO não perdia tempo, ciente de seu tempo ser curto para cumprir mais entregas. Ao arrancar a charrete, geralmente duas marcas ficavam impressas por minutos no cascalho: uma poça diminuta de leite e a espuma da urina do animal.

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Sensibilizado com a causa animal, desde criança, tive especial atenção com os equinos que cumpriam sofrida jornada missionária leiteira. Nunca descansavam, afinal?

Melhor observando, concluí que devia ocorrer eventual substituição nos que passavam pelo meu bairro [Edgar Pereira]. Se Justiça existisse, isso seria o correto. Nunca me atrevi a perguntar tal coisa ao condutor da charrete nem a ninguém.

Torci, contudo, para tais ausências serem imperiosa normativa de descanso da cooperativa aos nobres equinos. Ou, pior, talvez estivessem trabalhando em outras partes da cidade: cansaço e dor animal não sensibilizam quem tem gana financeira…

Não uma, duas vezes, mas várias, flagrei os cavalos da carrocinha do leite sendo impedidos de aliviar a bexiga. As surpresas chicotadas nas ancas assustavam os pobres, estancando a urina.

– Aqui não é hora nem lugar, animal! – brado autoritário dos condutores aos indefesos quadrúpedes.

Só queriam descarregar o líquido represado…

Ouvi, ainda, reclames absurdos de que a urina pudesse contaminar o leite.

Tal “tratamento” era acrescido de outra crueldade: a rude fixação de de ferros (freios)  na boca dos animais. Judiação nazista!

Alguns apresentavam cortes nas laterais, em face dos violentos puxões nas rédeas. Sangue e espuma seca se misturavam, formando pasta dolorida…

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DEVO ESCLARECER o seguinte: o presente relato da carrocinha do leite é um dos casos mais brandos envolvendo charretes e carroças; os condutores, em geral, agem monstruosamente contra os quadrúpedes que sustentam suas famílias e farras alcóolicas.

Se alguém flagrar quadrúpede sob sol em frente a algum bar, chame a Polícia: o carroceiro está entornando cachaça, enquanto o animal padece sob sol, faminto e sedento.

Omitir-se de defender os animais é se inserir na categoria de cúmplice de crime bárbaro.

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TAMBÉM recordo que fui recriminado ao levar água para os cavalos da carrocinha do leite. Para os vizinhos, aquilo significava atraso no recebimento do produto, visto que os animais costumavam desequilibrar a charrete ao abaixar o pescoço em direção ao balde.

Minha recompensa foi o olhar terno dos equinos, disfarçado nas sombras dos seus cílios imensos.

– Vá pra casa, menino! Deixe o homem trabalhar em paz, sô! – pitos comuns.

ESSA cena, de chegada e partida da carrocinha do leite, aconteceu por muitos anos. Hoje, é uma lembrança que não traz nenhuma saudade…

RETORNO DE FILME ANGUSTIANTE…

Na última vez em que estive em Montes Claros, visitei o meu antigo endereço. Olhando tudo ao redor, agora bem diferente, veio à mente a imagem da carrocinha do leite subindo a rua em arranques rápidos, promovidos por violentadas chicotadas.

É um filme que traz retrospecto revoltante, porque escancara a única verdade: sempre inexistiu reconhecimento, sequer defesa, ou justiça, aos quadrúpedes que fazem muito para engrandecer a prosperidade econômica do País.

Quando digo FAZEM, refiro-me aos municípios que ignoram as leis de proteção animal, permitindo que carroceiros carrascos explorem, torturem e matem os animais que escravizam da pior forma possível.

Há exceções, bons carroceiros? Sim, há. Mas representam percentual mínimo no gráfico da massa de condutores covardes.

Urge, pois, que o País inteiro tome vergonha na cara e os governantes, com apoio do Legislativo, baixem resolução proibitiva para o tráfego de veículos movidos a tração animal.

Alguns poucos municípios, a exemplo de Cuiabá, já fizeram isso. Os demais, ora ostentando braços omissos, estão esperando o quê?

Por João Carlos de Queiroz, jornalista

 

 

 

 

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